Quando estava na escola, eu não entendia o que a Amazônia tinha a ver comigo. Aquela floresta lá longe e eu aqui, no sudeste do País. E nenhum professor conseguiu me fazer entender isso. 

Quem deu conta dessa explicação foi a vida em São Paulo, o amadurecimento, o estudo, a busca por informações e, por incrível que pareça, a observação da natureza que existe na cidade de São Paulo. Observar essa natureza urbana me levou a pesquisar, me aprofundar e avançar nas reflexões sobre o tema. 

E neste momento em que a televisão, a internet, o rádio e as redes sociais falam  o tempo todo de aquecimento global e mudanças climáticas, entender a relação destes eventos com a vida urbana, com o nosso cotidiano, é mais do que importante. 

Por mais que a Amazônia e as calotas polares estejam a milhares de quilômetros da gente, precisamos delas para que a nossa vida se desenvolva de forma saudável. 

A Pesquisa Viver em São Paulo: Meio-Ambiente, feita pela Rede Nossa São Paulo, apontou que apenas 29% da população paulistana afirma conhecer muito sobre aquecimento global ou mudanças climáticas; 59% dizem conhecer pouco e 13% nada. Porém, 80% consideram a questão do aquecimento global ou mudanças climáticas muito importante e 62% declaram ter muita preocupação com o tema.

Para ajudar nessa explicação, o Verde SP começa uma série de textos, artigos e reportagens que buscam se aprofundar neste assunto. E o primeiro é uma entrevista com o professor Marcos Sorrentino, biólogo, doutor em Educação e coordenador do Laboratório de Educação e Política Ambiental da Esalq/USP. 

Como educador, biólogo e pesquisador, Marcos Sorrentino tem muito a nos ensinar e nos provocar sobre essa relação tão próxima – mas que parece tão distante – dos humanos da cidade com a natureza e as mudanças climáticas. 

Qual a relação entre as mudanças climáticas e a vida em uma cidade como São Paulo?

A percepção mais imediata a respeito dessa situação se dá pelos eventos extremos, como as enchentes, e, agora, a seca. Mas também podemos expandir a nossa compreensão. A pandemia, por exemplo, tem muita probabilidade de ter uma relação forte com as mudanças climáticas e com os eventos que causam as mudanças climáticas, como o desmatamento.  A redução da cobertura florestal na Amazônia tem um impacto na vida silvestre, fazendo com que os animais se aproximem mais dos seres humanos, facilitando a liberação de doenças, vírus e bactérias que geram impactos na nossa vida e pode ter como consequência eventos como esse do coronavírus.

A percepção sobre a inter-relação que existe entre toda a vida na terra é muito importante para começarmos a construir formas de viver diferenciada dessa que temos nos dias atuais.

Por que é tão difícil pra gente, que vive em São Paulo, ter essa percepção do todo? 

O nosso cotidiano é muito alienado e alienante das conexões dessa teia de vida que habita o Planeta Terra. Há uns anos, quando estava tramitando no Congresso a mudança do Código Florestal brasileiro, meus filhos levaram um abaixo assinado pra escola e a diretora proibiu que fosse levado para as salas de aula, dizendo que a Amazônia estava muito longe e que Piracicaba não tinha nada a ver com isso. A percepção de uma diretora de escola era de que o Código Florestal tinha a ver só com a floresta amazônica e que a floresta amazônica não tinha nada a ver conosco. Mas a verdade é que nos comprometermos com a Floresta Amazônica, com a Mata Atlântica ou com o degelo das calotas polares faz parte de um compromisso com a vida. E esse compromisso pode e deve se manifestar de diversas formas, seja nos diálogos sobre os destinos do planeta, nos acordos internacionais para lançar menos CO2 na atmosfera, ou na ação local cotidiana, tomando atitudes que contribuam para o enfrentamento global das mudanças climáticas e também para a melhoria das condições locais. Então, pequenas atitudes cotidianas são muito importantes. Eu digo pequenas, mas elas podem ser muito grandes. Nos manifestarmos contra a necropolítica hoje hegemônica no país, por exemplo, é uma forma de fazermos uma manifestação sintonizada com uma necessidade planetária, mas também com uma necessidade local, porque o desemprego, o sofrimento, as pessoas morrendo por causa da pandemia está batendo na nossa porta. Esta compreensão abrangente da problemática socioambiental que tem nas mudanças climáticas uma de suas emergências mais fortes é muito importante e precisa ser trabalhada. 

A cidade pode ser um ambiente de educação ambiental?

Pode, deve e precisa ser um ambiente de educação. E muitas pessoas fazem isso, só que de forma marginal, porque é algo que ainda não ganhou a estatura de política pública. Nós precisamos de governantes mais esclarecidos, que compreendam que a cidade pode e precisa ser educadora. Essa perspectiva da cidade ser educadora é construída também cotidianamente por inúmeras ações que o ativismo ambientalista coloca, como os hortelões e hortelãs urbanas que ocupam terrenos baldios ou pouco utilizados com a implantação de hortas urbanas, ou os movimentos de sem teto e sem terra que ocupam áreas abandonadas, prédios que estão há anos desocupados. Todas essas pequenas grandes ações cotidianas estão aí para nos educar.

A cidade pode ser educadora, mas é necessário que nós consigamos dar visibilidade às iniciativas de resistência e consigamos incidir nas políticas públicas para que elas transformem efetivamente essas ações marginais em um processo continuado de transformação da nossa realidade.

Tecnologias como telhados verdes, jardins verticais e painéis solares podem ajudar a deixar a cidade mais resiliente e também ajudar as pessoas a entenderem melhor essa relação?

Sim. Mas elas não podem ser vistas como a salvação da lavoura. Não é possível que se compreenda uma tecnologia como solução única. Primeiro, é necessário que essas soluções sejam apropriadas pela sociedade. Não basta uma solução de cima pra baixo, chegando e transformando as fachadas de todos os edifícios em fachadas verdes. Se não forem construídas com a população que utiliza aqueles espaços, rapidamente se tornam obsoletas, são esquecidas e viram sucata. Segundo, há uma tendência muito grande em transformar tudo em mercadoria e essas soluções logo viram objeto de compra e venda e não conseguem se inserir no cotidiano das pessoas como mudanças culturais e sustentáveis. É importante que muitas dessas soluções se tornem objeto de hospitalidade, generosidade e acolhimento no cotidiano das pessoas. Uma coisa é você vender um kit de sementes com ferramentas para as pessoas fazerem jardinagem. Outra coisa é você incentivar as pessoas a prestarem atenção nas árvores, colherem sementes, compreenderem que a semente é uma preciosidade. Todas as sementes são os elementos mais preciosos de origem da vida, de continuidade da vida. E nós educamos outro, nos educamos e temos atitudes cotidianas de jogar semente no lixo. Como nossas crianças são educadas quando veem que a semente vai pro lixo? Elas passam a desejar a tecnologia que termine com as sementes das frutas porque dá menos trabalho pra comer. Há uma cultura de alienação em relação a importância da semente, só pra dar esse exemplo de que não basta soluções tecnológicas como painel solar ou fachadas verdes se elas não estiverem acompanhadas de mudança de valores, comportamentos e atitudes. Ficarão como uma intervenção pontual e descontínua.

Você é um otimista? Acha que São Paulo pode ser uma cidade melhor?

Não nos resta outra opção senão sermos otimistas. Ou pelo menos pessimistas não trágicos. Sermos realistas, mas de um realismo que não abandona o engajamento na construção de uma sociedade mais justa, equânime, sustentável, verde, caso contrário podemos jogar a toalha, devolver o bilhete de ingresso desse planeta. 

Pensando nessa realidade, você tem alguma dica de pequenas atitudes individuais para ter um impacto mais positivo na vida urbana?

A primeira atitude individual que eu sugiro é agir coletivamente.

Engaje-se, comprometa-se, procure mais pessoas e combinem como transformar essa realidade. A ação exclusivamente individual tende a não dar frutos. Sempre precisamos de mais de uma pessoa para reproduzir a vida.

Essa busca do outro me parece a primeira atitude individual importante. As demais podem e devem se dar no âmbito do cotidiano, como fazer com as próprias mãos tudo que for possível, como a preparação do seu alimento, o plantio, ou um presente. Fazer com as próprias mãos tem um sentido mágico. São atitudes individuais, porém comprometidas com o planeta, com a vida, com a resiliência, a resistência às mudanças climáticas. Podemos ir expandindo isso para participar de partidos políticos, participar de associações de moradores, movimentos, se organizar para ocupar uma terra, um prédio e dar uma utilidade mais forte e inclusiva para essas áreas. Acredito que todas essas iniciativas nos potencializam pra grande iniciativa que é fazer uma gestão do Planeta Terra de uma forma diferente desta que vem sendo feita. Na história da humanidade, nunca tivemos esse desafio e essa oportunidade de fazer a gestão do planeta como um todo. Então, as iniciativas podem ser vistas como tímidas, acanhadas, contraproducentes, mas estamos aprendendo a fazer isso. E temos que aprender simultaneamente com as iniciativas locais, individuais e de pequenos coletivos e as iniciativas planetárias. Por isso que o movimento espanhol Ecologias em Ação tem como mote “por uma nova cultura da Terra”. E nós, no Laboratório de Educação Política e Ambiental da USP, que eu coordeno, pegamos carona nesse mote e colocamos “por uma nova cultura da Terra, da terra e dos territórios”. Essa nova cultura é forjada simultaneamente na compreensão de que precisamos de uma humanidade reanimada, modificada, com uma outra forma de organização para tomada de decisões sobre a nossa relação com a natureza e com a Terra e precisamos também de seres humanos que constroem cotidianamente essa nova relação com a terra, com a sobrevivência, a produção que nos permite sobreviver, a transformação da natureza que nos permite sobreviver enquanto seres humanos, a partir de cada território de existência, seja o território geográfico, o nosso município, bairro, rua, casa, seja o território relacional de que fazemos parte.

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